Pesquisas de mestrado abordam episódios de compulsão alimentar em mulheres

A PUC Goiás é referência dentre as instituições de ensino superior (IES), devido ao seu tripé indispensável: ensino, pesquisa e extensão. No Brasil, grande parte das pesquisas são desenvolvidas dentro do ambiente acadêmico, sendo ela indispensável para uma agremiação ser reconhecida como universidade.

Quando se trata de produção de conhecimento, fatores como a interdisciplinaridade tornam-se fundamentais. O diálogo entre disciplinas em torno de um mesmo tema é reiterado pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), e adotado pelos programas de pós-graduação da PUC.

Fruto dessa metodologia, duas profissionais de áreas distintas trabalharam suas respectivas pesquisas sob o olhar do autoestigma como desencadeador de episódios de compulsão alimentar em mulheres.

Luciana Pacheco, psicóloga clínica e mestranda, e a nutricionista Ana Caroline Rodrigues, egressa da pós, desenvolveram seus projetos a partir de um viés funcional com o aporte do Laboratório de Análise Experimental do Comportamento (LAEC), diante a orientação da Profª. Dra. Sônia Neves.

Professora na universidade há mais de 27 anos, Sônia tem um vasto currículo com foco na psicologia comportamental, sendo 15 deles baseados em distúrbios alimentares.

“Eu já venho trabalhando essa temática há algum tempo, orientando alunos na graduação e pós. Nós temos projetos dos mais diversos tipos que envolvem alunos de outras frentes. Já tive alunos médicos, nutricionistas, psicólogos, educadores físicos, dentre outros. Muitos profissionais chegam na LAEC com interesse em desvendar questões que rondam inúmeros temas, procurando auxílio na psicologia. Cada vez mais eu vejo o interesse de outros especialistas em ajudar na busca de conhecimento a respeito do comportamento alimentar”, comenta.

Segundo a Federação Mundial de Obesidade (World Obesity Foundation), cerca de 33,2% das mulheres brasileiras viverão com obesidade até 2030, mais de 8% em relação aos homens. Um índice já indicado pela pesquisa do IBGE realizada em 2019, amostrando que a obesidade feminina passou dos 14,5% para 30,2%.

A docente ainda explica que os estudos recentes indicaram a necessidade de considerar fatores externos como agentes estimulantes para a doença.

“A obesidade gera muito sofrimento, quanto maior é a epidemia, maior é o seu estigma. Nós habitamos um mundo em que a sociedade propicia um ambiente inóspito, que acelera o desenvolvimento do autoestigma, ocasionando essa realidade alarmante. O tema obteve maior foco nos trabalhos recentemente, nós não percebíamos isso como um ponto importante no processo terapêutico como agora”, salienta.

Processo de aceitação e compromisso

O conhecimento acerca da palavra estigma foi ampliado nos últimos 10 anos em relação ao acréscimo considerável de análises referentes a ela. Um conceito para definir ações depreciativas contra um indivíduo, oriundas de experiências sociais impulsionadas pelo preconceito, seja ele racial, de gênero ou estético.

Todos os fatores externos negativos sofridos pela vítima desencadeiam o autoestigma, caracterizado por pensamentos individuais agressivos e o medo do julgamento em massa.

Apaixonada pela pesquisa, Luciana Pacheco possui especialização na Terapia de Aceitação e Compromisso (ACT), ferramenta de intervenção aplicada em pacientes que busca analisar as individualidades de cada um para desenvolver estudos personalizados em determinada especificidade.

Certa abordagem comportamental ancorou a sua metodologia, realizada em dois grupos formados por 15 mulheres entre 24 e 49 anos com autoestigma e sobrepeso.

“Eu escolhi trabalhar com grupo por ser uma atividade muito potente. O sofrimento gerado pelo autoestigma ocasiona o isolamento, a pessoa não quer sair de casa, ela não quer se relacionar, devido aos vários pensamentos pejorativos que rondam a sua cabeça. No grupo ela tem a oportunidade de ver outras mulheres passando pela mesma situação, compartilhando outras histórias de vida que trazem uma carga forte de sofrimento. Dessa forma elas não se vem sozinhas”, afirma.

O interesse pelo tema veio durante a iniciação científica, através de uma abordagem realizada com um grupo de mulheres obesas, dinâmica que se tornou um pilar para o seu mestrado.

“Quando eu decidi o tema do meu mestrado, ficou muito claro que era uma pesquisa clínica com intervenção, porque eu estou sempre buscando aliar a minha carreira clínica com a acadêmica”, declara.

A decisão por adotar a ACT não partiu somente em face da sua especialização, mas na necessidade de proporcionar ao paciente uma atenção plena e genuína, caráter indispensável na psicologia. Instrutora de mindfulness e autocompaixão, atividade estimulante a concentração total do sujeito no momento presente, colaborou com o recurso escolhido no projeto.

“O nome da terapia já indica qual é o seu viés, começando pela aceitação. É sobre a pessoa criar a habilidade de aceitar as suas próprias experiências internas, com isso ela cria impulsos para a mudança. O compromisso da ACT é para com a própria vida, baseada nos valores da pessoa, é o compromisso com a mudança. É uma terapia que vai receber pessoas, a gente entende que quando elas se emaranham em seus próprios sentimentos e se engajam na vida diante disso; em pensamentos pejorativos a respeito dela mesma, com frases difíceis, é preciso fazer algo a respeito. Nesse momento que incluímos a técnica de mindfulness, justamente para que elas desidentifiquem desses pensamentos dolorosos”, certifica.

O seu trabalho segue em fase final, em processo de análise de dados, demonstrando resultados significativos. As pacientes apresentaram uma redução considerável nas ocorrências do autoestigma e um aumento da flexibilidade psicológica, referente a consciência plena, pontos obrigatórios para alcançar uma maior qualidade de vida.

Interdisciplinaridade e atenção básica à saúde

O relatório final da VIII Conferência Nacional de Saúde, realizado em 1986, estabelece o início da transição dos modelos biomédicos tradicionais para o acesso universal e igualitário às ações de promoção a saúde pública.

A partir dessa nova realidade, a função do nutricionista passa a ser obrigatória na presença de um quadro crescente de doenças crônicas não-transmissíveis diante a alteração nutricional na população brasileira.

Uma das suas obrigações é assistir o paciente a partir de uma atenção multidisciplinar ampliada, não restringindo somente aos Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF), mas para a carreira profissional.

Ana Caroline é nutricionista, graduada pela Universidade Federal de Goiás (UFG), com especialização em nutrição clínica. O interesse pelo tema surgiu doravante ao atendimento de uma paciente com compulsão alimentar, enquanto ela compunha uma equipe do NASF.

Sabendo que os aspectos socio-psico-culturais inferem profundamente no comportamento alimentar, é de suma importância pesar o contexto de vida das pessoas obesas, para compreender o que acarreta tamanha adversidade.

“Para tratar a compulsão alimentar é preciso de um psicólogo, existem muitas questões emocionais correlacionadas aos antecedentes que levam a pessoa a comer. A paciente chega no consultório e fala que come por ansiedade. Como eu vou saber se ela realmente tem ansiedade? Porque eu não sou psicóloga”, argumenta.

A necessidade de ampliar o seu conhecimento a levou até a PUC, recebendo o ensejo de desenvolver a sua pesquisa por uma linha interdisciplinar.

“Como o meu mestrado foi interdisciplinar, eu quanto nutricionista e a Sônia como psicóloga, eu pude obter uma bagagem dentro da psicologia. Foi a minha orientadora que me apresentou a análise do comportamento, eu não conhecia. Essa análise foi extremamente importante para a minha pesquisa. A interdisciplinaridade é essencial desde a graduação, porque se discute muito sobre o tratamento multiprofissional, mas na prática ele normalmente não acontece”, comenta.

O projeto contou com a participação de 4 mulheres adultas que se enquadram no parâmetro do autoestigma, obesidade e indícios de compulsão alimentar. As análises quantitativas foram baseadas em questionários já inseridos no meio acadêmico, sendo os principais: The Weight Self – Stigma Questionnaire (WSSQ), voltado para análise do autoestigma, e a Escala de Compulsão Periférica (ECAP), utilizada para investigar os graus de compulsão alimentar no indivíduo.

Mais do que apenas analisar números, o foco estava em observar os aspectos subjetivos de cada voluntária. Durante o processo qualitativo foi incorporado o diário alimentar, uma estratégia utilizada por muitos nutricionistas que procuram descobrir os hábitos alimentares do paciente.

Em casos de compulsão é possível captar através do diário todos os antecedentes que ocasionaram um episódio de crise, assim como os sentimentos de culpa aflorados após a instabilidade. A leitura dos casos foi guiada pela análise comportamental nas mulheres, possibilitando entender todas as inconsistências emocionais apresentadas por elas.

“Com a análise dos diários alimentares foi possível dar devolutivas para as participantes. Durante o encontro, eu não julgava certa atitude, apenas demonstrava o comportamento de cada uma. Só por relatar os casos e a pessoa ter conhecimento sobre ele, ela diminuía os relatos de autoestigma no final da pesquisa, justamente por passar a observar fatores no ambiente que geravam esse desconforto. Às vezes a presença de um familiar na mesa fazia com que a participante não comesse, por exemplo. Ao observar isso ela compreendia que estava comendo dessa forma por conta de determinadas situações, estimulando-a a enfrentar e superar esses traumas”, explica.

A pesquisa determinou que casos de transtorno alimentar devem ser trabalhados por equipes multiprofissionais devido aos fatores biológicos, genéticos, psicológicos, nutricionais e socioculturais que interferem no avanço dessas doenças

“A psicologia ajuda a entender esses comportamentos e como eles levam aos casos de compulsão. A análise do comportamento ajuda essas pessoas a enfrentar os seus problemas. Eu como nutricionista venho ensinando para elas o que seria uma alimentação saudável. O primeiro passo é analisar os fatores psicológicos que acarretam o problema, depois que a pessoa toma consciência sobre o problema e inicia o tratamento, aí entra a nutrição. Vamos introduzir uma alimentação saudável na vida dessa pessoa, mudar o seu hábito”, analisa.

O projeto é tratado como inovador por incluir o diário alimentar como ferramenta para análise prolongada dos casos de compulsão. Um trabalho essencial por trazer profundidade aos dados quantitativos e estudo de casos que irão sustentar outras pesquisas voltadas para o tema.

(Texto: Juliano Cavalcante, estagiário da Dicom)